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LUGAR COMUM
 
   
 
Era uma vez um rei e uma rainha que muito queriam ter uma princesa. Tentaram muito, mas sem sucesso. Consultaram médicos, curandeiros, videntes e mesmo bruxos, que lhes receitaram chás de folha de amora, sumo de romã, pó de corno de rinoceronte. Em vão. Aconselharam-nos de variar as posições, e assim o casal diligente exercitava-se na posição da égua, na do bambu rachado, até na difícil da flor de lotus. Sem efeito. Encorajaram-nos de aperfeiçoar-se na técnica da penetração rasa, dita muito eficaz para a concepção de meninas, o que fizeram, apostando ainda, sempre que ele conseguia, nas vantagens do pão duplamente barrado. Tentaram tudo, mas nada resultou.

Como se amavam muito – lembram-se que é um conto de fadas – o rei não despachou a rainha para tentar a sua sorte numa rapariga mais nova e porventura mais fecunda - não, ficou fiel e ao fim de anos de esforço inglório ambos acabaram por conformar-se. Renderam-se ao destino e dedicaram-se doravante à arte de cavalgar e de ser cavalgado com nenhum objectivo ulterior ao do prazer.

Foi agora, o que não surpreende a quem sabe destas coisas, que a rainha engravidou, e nove meses depois nasceu a tão esperada filha.

Contudo, e desde o primeiro dia isto entrou nos olhos dentro a todos, havia um pormenor nesta história feliz que ameaçava transformá-la num grande desgosto. Para os pais e, pelo menos mais tarde, para a filha também. A menina era, não havia maneira de lhe chamar outra coisa, feia que nem um trapo. Raras vezes viu-se uma criança tão preterida na distribuição dos encantos naturais como esta. Mesmo a tez tenra e saudável da juventude, capital que as raparigas de resto pouco contempladas por Afrodite podem rentabilizar a seu favor, e que, se o jogam em tempo útil com juizo e espírito predador, lhes dá uma oportunidade de sair do mercado casadoiro com um marido de três vezes da sua idade e, se não dotado de outra forma, talvez ainda dono duma modesta fortuna... mesmo este recurso foi concedido a nossa princesa só em medida pouco apreciável.

Mas era princesa e tinha pais que a amavam. E eles não eram pessoas para agora se darem por vencidas. Não se contentavam com banhos de leite e mel, águas de rosas, as várias loções, pomadas e outras receitas equivalentes aos botoxes e colagenes dos nossos dias que os médicos, já bastante desacreditados pelo seu desempenho anterior, prescreveram à sua filha. Tiveram uma ideia melhor. Deixaram-na crescer na convicção de que seria das princesas, que digo: das meninas todas uma das mais lindas no mundo, formosa e resplandecente, dona dum encanto que por si só vencia os corações dos que a rodeavam (que eram servos escolhidos e instruidos pelos pais dedicados), e senhora dum sex-appeal irresistível e apenas domado pela educação excelente que recebeu. De maneira que se enraizava nela a convicção de que seria um ser adorável, abençoado pelo destino, e por seguinte um desejo natural de retribuir ao mundo a sua sorte com a partilha generosa do seu encanto.

Já perto da idade para passar à prática procriativa aconteceu-lhe, porque tinha de acontecer, o grande infortúnio. A revolução. O reino desmoronou, a plebe ocupou as ruas, e os pais nem tiveram tempo de despedir-se da filha, tão rapidamente foram-lhes cortadas as cabecas dos corpos reais.

A princesa sobreviveu, escondida por criados no seu mundo artificial, mas com o tempo também este se desfez e no fim a nossa heroina acabou por ver-se exposta ao mundo real: só, uma cidadã anónima, pobre e feia da nova república.

Porém, o fim trágico não sucedeu. Pelo contrário. Com a convicção inabalável do seu encanto, segura de si, continuava a portar-se com inegável graça, convencendo a poucos todos a sua volta de que estavam perante uma donzela bem desejável, o que lhe permitiu escolher entre muitos rapazes viçosos, dispostos a barrar-lhe o pão as vezes que lhe apetecia e de viver com ela feliz até ao fim dos seus dias.

Lutz

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